O Boog

por Mundo Sombrio
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Quando outubro começou a cair pesado sobre o Lago Junior, o ambiente inteiro parecia inquieto. As bolotas batiam no telhado de metal como se algo estivesse tentando sair das árvores, enquanto relâmpagos cortavam o céu com uma violência quase teatral. A lua cheia se derramava sobre a água num brilho pálido, criando a estranha sensação de que o lago respirava sozinho. Eu estava sentado na minha cadeira azul desbotada, observando a minha cadelinha, Gypsy, se orientava como conseguia no escuro.

Ela era pequena, quase frágil, um amontoado de pelos desalinhados que parecia resultado de uma mistura improvável entre um Maltês e… algo que o destino encontrou num beco. Surda, com a visão falha e aquele som estranho que ela fazia — um engasgo seco seguido por um ruído de vômito que nunca acontecia — Gypsy era meu ponto de luz naquela noite pesada. E, apesar de tudo, tinha um jeito de me arrancar um sorriso.

Até desaparecer.

Eu havia comprado meu pequeno trailer naquela região por causa de parte da minha família, que nunca me aceitou muito bem. Era um lugar simples, meio caído, mas era meu. A vizinhança, porém, era outro tipo de gente. De um lado havia um homem com um passado sombrio demais para eu querer questionar. Do outro, os Hoods — um casal que parecia ter surgido de alguma piada macabra do destino. Ela era enorme, agressiva, vivia gritando insultos para quem ousasse estar perto dela. Ele tinha cumprido quase um ano de prisão por jogar pedras em adolescentes por ordens da própria esposa. A convivência com eles era um pesadelo constante.

Quando ela morreu — encontrada em avançado estado de decomposição perto do lago — e ele foi achado mumificado meses depois em casa, a quietude que se instalou foi tão profunda que chegava a incomodar. A sensação de “paz”, ali, sempre tinha um gosto amargo de aviso.

Naquela noite, quando Gypsy roçou minha perna, senti uma vontade estranha de ir até a beira do lago. O som das criaturas noturnas vibrava como um ritual antigo. O ar parecia pesado, mas vivo. Então veio o barulho: um respingo curto, como se algo tivesse emergido por meio segundo na água. Lembrei do filhote de jacaré que alguém disse ter visto ali no ano anterior. Talvez fosse isso. Talvez fosse outra coisa.

Me virei para voltar à varanda, e, no instante seguinte, senti algo tocar meu pé. O chão pareceu sumir. A cabeça da minha cachorrinha estava ali, caída como se tivesse sido largada às pressas. Os olhos dela estavam arregalados, e a boca congelada num silêncio que doeu mais do que qualquer grito. Ouvi algo correndo pelas moitas, rápido demais para que eu pudesse realmente ver. Só um borrão. O resto foi só dor.

Rex, meu amigo — um ex-circense que já tinha visto de tudo na vida — foi o primeiro a arriscar uma explicação:

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— Pode ter sido o Boog — disse ele. — A criatura de Bardin.

Bardin era uma cidadezinha vizinha, cheia de relatos estranhos desde os anos 1940. O tal Boog era descrito como uma aberração do pântano, um ser deformado que surgia do breu para acertar contas antigas. Quase ninguém vivo ainda falava sobre ele… menos uma mulher chamada Ma Lady, a última testemunha daquilo tudo.

Fomos até ela. Ma Lady estava sentada perto do pequeno mercado Bud’s, com um xale sujo e um olhar que parecia atravessar a alma de qualquer um. Ela fumava mesmo com uma placa de “Proibido Fumar” bem ao lado. O cheiro forte envolvia tudo. E então ela disse, com aquela voz trêmula:

— O B-Boog c-cortou a c-cabeça da sua c-cachorrinha… — ela disse.

A frase ficou pairando no ar como uma faca suspensa.

Voltamos para Interlachen e fomos direto procurar Ann, minha amiga e vizinha — uma bruxa de verdade, daquelas que não seguem nem a linha branca nem a negra. Ann era… apenas Ann, uma força própria. Quando contei o que tinha acontecido, ela chorou. Depois, com uma calma que me arrepiou, disse que o Boog não era uma criatura do pântano. O Boog era Ma Lady.

Ma Lady era uma metamórfica, alguém capaz de abandonar o próprio corpo e assumir outra forma. Ann a ajudava nos rituais, usando plantas perigosas e tóxicas — marigold, wolfsbane, buckthorn — com o objetivo de permitir essa mudança. A forma que resultava disso não tinha nada de humano: cerca de um metro e vinte de altura, garras negras, dentes enormes, pelos grossos, língua fina e comprida… e um rosto que não pertencia a lugar nenhum.

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A transformação não deveria ter acontecido de novo. O Boog existia somente para executar vinganças — e, na visão delas, a morte dos Hoods havia sido merecida porque o casal havia afogado vários gatinhos do lago. A criatura cumpriu o que precisava fazer. Mas voltou. E encontrou Gypsy.

— Ela só estava no lugar errado, na hora errada – Ann sussurrou, apertando minha mão com força suficiente para me manter ancorado.

Desde aquela noite, o Lago Junior nunca mais pareceu silencioso. Há lugares onde o sobrenatural não precisa bater à porta. Há lugares onde ele simplesmente mora, esperando alguém se aproximar sem perceber que está entrando num território que não perdoa distrações — nem inocências.

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