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Doces ou Travessuras

por Mundo Sombrio
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O vento de outubro cortava o ar como uma lâmina fina, levantando as folhas secas que dançavam pela rua silenciosa. Eu tremia sob o lençol que fingia ser meu traje de fantasma — um improviso malfeito que balançava como uma bandeira prestes a rasgar. À frente, meu melhor amigo, Mikey, desfilava com seu chapéu de caubói barato, o adereço oscilando sob a luz pálida da lua.

Nosso plano de doces ou travessuras era infalível. Havíamos estudado o bairro como estrategistas: começaríamos do alto da colina, visitando as casas dos “ricos do quarteirão” — aquelas que davam barras inteiras de chocolate — e evitaríamos os esquisitos que entregavam balas de hortelã ou pastilhas de tosse. A cada esquina, o saco de travesseiro que eu carregava ficava mais pesado. O sucesso da noite pesava nos meus braços e alimentava minha euforia.

“Três casas e acabamos!” — gritou Mikey, a voz dele se misturando ao farfalhar do vento.

Corri atrás dele, tropeçando nas pontas do lençol, até parar diante da casa mais enfeitada da rua. O gramado era um pequeno cemitério de mentira: lápides de isopor, esqueletos de plástico, teias artificiais cobrindo os arbustos e, acima, aranhas gigantes com olhos vermelhos pulsando como brasas. O som de uma máquina de fumaça tornava o ar espesso, quase impossível de respirar.

Mikey virou-se para mim com um sorriso largo e sardento. Aquela casa prometia.
Mas quando alcancei a varanda, vi apenas uma tigela vazia sobre um tapete que dizia Feliz Halloween. Mikey já vinha descendo o caminho com punhados de chocolates rei-size.

“Ei! Você levou tudo!” — gritei, frustrado.

Ele riu… ou pelo menos achei que riu. Quando cheguei à calçada, ele já não estava mais ali.

Chamei por ele uma, duas, três vezes. Nada. O silêncio das ruas vazias era mais pesado do que o vento gelado. Um arrepio subiu pela minha espinha.

A próxima casa era conhecida: a da senhora que sempre dava balas pegajosas e doces antigos, do tipo que ninguém queria. O único ponto de luz vinha de uma abóbora sorridente na varanda, seu brilho trêmulo tentando iluminar a escuridão que engolia o quintal.

“Mikey?”, sussurrei, mas o nome pareceu se perder no ar.

Subi os degraus, determinado a encontrá-lo. Bati na porta com força. O som ecoou por dentro como se a casa fosse oca. Então, o trinco se moveu sozinho e a porta se abriu lentamente, soltando um gemido metálico.

Um perfume invadiu o ar — doce, irresistível, quase hipnótico. Cheirava a torta quente, a manteiga derretida, a canela. Um aroma que fazia o estômago roncar e o coração desacelerar.

A mulher apareceu. Cabelos prateados, rosto rosado, dentes brancos demais para alguém daquela idade.
Doces ou travessuras, querido? — perguntou ela, com um sorriso que não chegava aos olhos.

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— Doces… — respondi, erguendo meu saco de pano.

Ela riu baixinho, e sua voz soou como o estalar de ossos velhos.
— Espere só um minutinho, deixei os doces lá atrás — disse, desaparecendo pelo corredor.

O cheiro dentro da casa ficou mais forte, mais denso, quase palpável. Eu vi algo no chão, perto da cozinha — um brilho familiar. Um chapéu de caubói.

O coração disparou.
“Mikey?”, sussurrei de novo.

Entrei. A porta se fechou atrás de mim com um clique seco. As janelas estavam trancadas, as portas dos cômodos correntes com correntes grossas. A cada passo, o cheiro me entorpecia, a fome crescendo até doer.

A cozinha se revelou como um templo macabro.
Uma mesa imensa estava coberta de travessas e bandejas reluzentes: carnes douradas, purês fumegantes, tortas que reluziam sob a luz alaranjada das velas. Meus olhos brilharam. A fome, agora insuportável, me arrastava até a mesa.

Mas então o horror se revelou.

No centro, cercado por guarnições perfeitas, estava Mikey.
Sem pele. Dourado. Amarrado, com uma maçã cravada na boca e os olhos vazios mirando o nada.

Senti o estômago virar, mas o cheiro era forte demais. Minha mente gritava para fugir, mas meu corpo não obedecia. As mãos tremiam. A velha surgiu atrás de mim, sua respiração fria tocando minha orelha.

Não deixe sua refeição esfriar, querido. É falta de educação.

A voz dela cortou o ar.
E eu cedi.

O garfo perfurou a carne do meu melhor amigo, e o sabor — doce, amanteigado, indescritível — apagou qualquer resquício de humanidade em mim.

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Quando dei por mim, estava coberto de gordura e lágrimas. A velha me observava satisfeita, estendendo-me um utensílio reluzente: um descascador de batatas.

— Sua vez de servir, meu bem — sussurrou.

Sentei-me no chão frio, rindo e chorando ao mesmo tempo. Comecei pelo braço, a lâmina arrancando a pele como se fosse papel. O sangue quente escorria entre os dedos, o cheiro de carne viva misturando-se ao aroma do banquete.

Quando o forno se abriu, deslizei para dentro, untado com manteiga e sal grosso. O calor me envolveu como um abraço. Lá fora, ouvi batidas na porta e vozes infantis cantando:

Doces ou travessuras!

A velha sorriu. E o ciclo recomeçou.

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