Contado pela menina Idália:
A mesa está cheia, hoje é quinta-feira e é frango com macarrão. Acho que falo por todos, quando digo que hoje é o nosso dia favorito e a agitação é sentida na sala de jantar.
Estamos todos esperando que a Sra. Ana nos sirva, para desfrutar dessa boa comida. Você vai dizer que exageramos, mas aqui é o melhor que temos.
Ah, sem contar que nos nossos aniversários, elas nos dão um doce do sabor que quisermos. E, bem, só faltam alguns dias para o meu aniversário de 8 anos. Mas de repente me chamaram:
“– Idália Hant, para a enfermaria!”
Bolas, por que agora e não quando estou esfregando o chão?
“– Idália!!!” – grita a irmã Juliana, pela última vez e eu não tenho outra opção senão segui-la.
De vez em quando, fazemos exames médicos, para saber como estamos de saúde e, assim, evitar que algo ruim nos aconteça.
Passo no escritório da Madre Superiora e vejo que ela fala com um casal. Talvez eles tenham interesse em me adotar e, por isso, tenho que fazer uma revisão médica.
Estou passando por mais dois escritórios até chegar na enfermaria. Bato na porta mas “está ocupada”. Então espero nas cadeiras, lá fora. Poucos minutos sai da sala uma menina, que parece ter a minha idade e senta ao meu lado:
“– Você é nova aqui?” – eu pergunto e ela nega.
Essa menina parece agitada e com dificuldade em respirar. Insisto:
“– Você está bem?”
“– Não! Mas minha mãe diz, que em breve estarei bem!”
Ouço vozes encherem o corredor e a Madre Superiora sai junto com o casal. A mulher elegante diz pra menina:
“– Claudia, venha, vamos embora!”
A menina corre e suas tranças saltam ao ritmo de seus passos.
Por um instante, ela me lembrou a Elena. Antes de perder a visão, Elena adorava correr e andar por todos os lados. Mas um dia, ela simplesmente voltou para os beliches com uma venda nos olhos e dois buracos negros substituíram àquele par de olhos azuis. Ela não voltou mais a ser a mesma!
Fiz os exames e disseram-me que não tinha corrido bem e que amanhã precisavam me examinar novamente. Eu não gostava dessas revisões, me deixavam desconfortável com a forma como me tocavam, mas sempre nos diziam que era necessário.
Voltei para a sala de jantar, quando todos tinham acabado de comerem. Mas a Sra. Ana tinha guardado a minha comida:
“– Como foi, pequena Idália?” – senti uma angústia em seu olhar, enquanto ela me falava. Respondi:
“– Deu errado! Amanhã vou ser examinada de novo, para confirmar o que eu tenho!” – a Sra. Ana começou a chorar. Disse-lhe:
“– Não chora! Eu vou sair bem nos exames e, no sábado, vou comer um dàqueles doces gostosos que só tu sabe fazer!”
“– Não é necessário esperar até lá. Toma, não conte à ninguém!” – de baixo da mesa, ela tirou um doce de chocolate prá mim.
“– Obrigada, Sra. Ana!” – rodiei a mesa e abracei-a – “Sábado me dará outro?”
“– Sim, pequena, no sábado te darei outro!” – a voz dela quebrou-se em choro e eu não entendia por quê:
“– Agora vai para o pomar que todos estão lá.” – finalizou a Sra. Ana.
A tarde passou comigo entre os pomares, costuras e orações. Na hora do banho, Sueli não foi conosco; ela ainda não se acostumou com a cicatriz, que estava embaixo, nas costas dela. Mas depois, ela faria como todas as outras. Raro era a menina que ainda não tinha, mas não sabemos à que se deve essas cicatrizes. Simplesmente um dia eles nos chamavam, fazíamos dormir e depois, quando acordávamos, já a tínhamos. A irmã só diz que é “para dar vida”.
Dia seguinte, ao acordar, como de costume, rezamos. E no café da manhã, me disseram que devo jejuar, porque tenho que ir para a enfermaria.
O médico me diz que vai me injetar algo para não doer, e eles começam a rezar por mim:
“– Que Deus me ajude!” – diz o médico e, antes de perder a consciência, vejo trazerem Claudia, aquela menina de tranças, que eu vi ontem.
***
Idália nunca saiu daquele bloco cirúrgico clandestino… viva! Ela saiu em um saco de lixo, transformado em conchas humanas. Mas seu coração saiu, em uma “embalagem de tranças”. E não vai demorar muito para conseguir “um comprador” para o resto de seus órgãos.
Esse tipo de “orfanato”, nada mais é do que um criadouro de crianças para essa finalidade. Essas casas possuem alas separadas por idades, pois os seus colaboradores buscam nos hospitais públicos, recém-nascidos de mães indigentes, cuja gravidez, na maioria das vezes, é conseqüência de estupros por outros indigentes ou prostituição em troca de drogas, vícios ou alimentos.
Essas mães são coagidas à doarem seus bebês, em troca de valores irrisórios que, no mais das vezes, sucumbem diante da possibilidade de poder adquirir alimentos ou vícios, mesmo que por curto período.
Infelizmente, gostaríamos que esta história fosse apenas “um conto”!
*****
Da obra “Elixir del Miedo”, México. Tradução, adaptação e pesquisa: Sérgio Gitel.
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