Mary Morta

por Mundo Sombrio
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Foi um dos meus primeiros casos. Não o primeiro, mas um deles, o que de cara me preparou para o que viria em seguida. A garota fora encontrada em um córrego. Totalmente despida, tinha apenas a calcinha presa no tornozelo direito. Estrangulada, ficaríamos sabendo depois. Um visível sinal de ferimento à faca na vulva, bem ao lado da vagina.

Seu nome era Mary. Tinha 14 anos e estava desparecida há três dias. A mãe tentou furar o bloqueio do cordão de isolamento, mas foi impedida. Caiu gritando no chão, chorando e pedindo confirmação se era mesmo a filha dela. O tio da garota, que já tinha se aproximado do corpo com um dos policiais, identificara a garota e falava com a irmã, impedindo-a de seguir adiante.

Embora eu já tivesse visto alguns locais de crime antes e depois de entrar na polícia, aquilo era novo pra mim. Eu era um dos responsáveis pela avalição do local. Portanto, a constatação do crime e a tarefa de juntar pistas cabia a mim e a mais dois colegas. Aquelas primeiras ações da profissão que eu assumira recentemente, representavam um peso sobre mim que só a experiência iria atenuar ao longo dos anos.

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Aproximei-me do corpo parcialmente submerso na água suja e olhei de perto. Eram umas três horas da tarde, num dia de sol na periferia de Fortaleza e o calor era intenso. Além disso, havia o fedor da lama e a terrível visão de uma jovem morta com as pernas abertas, enrijecidas, denunciando uma provável violência sexual. Coisa que também confirmaríamos depois. Agentes mais experientes que eu, também examinavam a cena e era esse meu amparo.

“Tá morta há pouco mais de 24 horas”, disse alguém que não recordo após esses anos todos.

Olhei para o rosto da menina, seus olhos encarando o céu sem expressão alguma, a boca entreaberta, a língua projetando-se sobre os dentes inferiores. Era loira, o cabelo cortado curto, na altura dos ombros. Uma garota que já não podia ser criança e que era jovem demais para ser mulher. Talvez os quadris largos tivessem atraído o assassino, talvez não. Embora a informação ainda fosse ser consolidada duramente ao longo dos anos, eu já sabia desses sujeitos que gostavam de menininhas.

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Ela lembrava Simone, uma garota da oitava série por quem eu fora apaixonado no meu tempo de escola. Ali se repetia uma adolescente que devia encantar os meninos de sua idade, que brincava na saída da escola com os colegas, que era inocente e muitas vezes maliciosa, cheia de segredos, que estava crescendo, aprendendo e vivendo, que um dia seria uma pessoa adulta. Não! Não mais. A trajetória havia sido interrompida da maneira mais torpe e horrenda possível.

O choro da mãe então foi contido e a multidão em volta do local cresceu. Fizemos nosso trabalho da maneira mais rápida e eficiente possível. Ali, naquele córrego, era difícil a permanência de pistas. O rabecão pegou o corpo da garota e o colocou naquela horrível gaveta fria de metal. Confesso que nesse momento tive certeza de que não havia um Deus benevolente em lugar algum. Se existia um criador, ele era indiferente, sem cuidado, sem remorso e virara o rosto para a humanidade. Todo o nosso drama era um espetáculo bruto e sem plateia alguma. Éramos os piores animais, os únicos em perversidade.

As pistas escassas resultaram em buscas incertas, poucos suspeitos e muitas lacunas. Naquele tempo não havia a tecnologia de hoje que nos ajudaria bastante. Mas o pior era a velha morosidade e falta de interesse da justiça que não via muita gravidade em adolescentes mortas e estupradas da periferia. Então, o caso foi engordar as estatísticas dos não solucionados.

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Meses depois, voltando pela manhã, depois de um terrível plantão, eu encontrei Mary na minha sala. Ela estava nua, as pernas cruzadas o braço direito sobre os seios num pudor do outro mundo. O susto me deixou sem folego. Demorei a conseguir falar, mas foi em vão. Mary só me olhou com tristeza. Dali em diante eu sempre a encontraria nos momentos mais inoportunos. Nunca me disse nada. Seus olhos falavam tudo. Eu sentia a culpa e também silenciava. Atravessei os anos vendo de perto a sordidez humana.  Tantas vítimas, tantos crimes insolúveis, sangue derramado e ódios sem explicação.

Ao me aposentar, deixei a cidade para não ver mais Mary e ficar longe daquela loucura. Aquela garota está morta há mais de quarenta anos e já não a vejo como costumava vê-la, mas não há um só dia em que eu não pense nela.


ESCRITO POR: Jorge Raskolnikov

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