Instalei-me naquela pensão pelos motivos mais óbvios: localizava-se próxima à minha faculdade e tinha um custo bastante baixo. E não poderia ser diferente, afinal era uma espelunca caindo aos pedaços. Os quartos, cubículos que mal viam a luz do sol, cheiravam a mofo por conta de infiltrações que jamais seriam reparadas. A instalação elétrica era precária, o que me fazia pensar que um incêndio estaria na iminência de acontecer. O banheiro e a cozinha eram comunitários, ou seja, de uso comum a todos os hóspedes. Em determinados horários, havia fila com pessoas portando escovas de dente, sabonetes e toalhas. Eu evitava esses horários críticos e, quando tinha um pouco de paz, sem alguém batendo a porta ou forçando a maçaneta, pensava como teria me metido naquele muquifo cheirando a urina.
As regras da cozinha eram bastante simples: lave o que sujou. Mas, mesmo uma regra tão simples, às vezes era deixada de lado e, por fim, era frequente encontrar a pia cheia de louça suja. Não foram poucas as vezes que acabei lavando pratos que não tinha usado. Basicamente tinha um fogão à gás, um micro-ondas, uma geladeira, mesa e algumas cadeiras. Havia, ainda, aos fundos da pensão, uma sempre imunda lavanderia, também de uso comunitário.
Os hóspedes eram, em sua maioria, pessoas fracassadas e frustradas. Havia velhos aposentados, amargando o esquecimento e a solidão da velhice. Também havia jovens que, impulsivamente, haviam deixado o conforto de deus lares em busca de liberdade e paz. E era comum também que criminosos, traficantes principalmente, daqueles da mais baixa classe, ali se escondessem. Eu não me importava muito com isso, sequer dava bom dia a alguém, se assim fosse possível. Só queria mesmo ter um lugar para dormir, tomar banho e preparar um macarrão instantâneo na madrugada. Seria passageiro. Logo me formaria e conseguiria um trabalho. Pelo menos esses eram os planos. Com a dona da pensão, eu queria o menor contato possível. Pessoa repugnante e grosseira, com mau humor até nos mais lindos dias de sol. Só a via, no que dependesse de mim, no dia de pagar o aluguel.
Mas havia alguém, naquela pocilga mal cheirosa, com quem eu gostava de interagir. Heitor era um homem de aproximadamente cinquenta e cinco anos. Eu o encontrava na cozinha, sempre durante as madrugadas. Eu gostava de preparar algo rápido no micro-ondas, nesses horários, quando a pensão parecia deserta, pois a maioria dos inquilinos se recolhia em seus quartos mofados. Heitor quase sempre estava lá, em sua cadeira de rodas, preparando algum chá. A seu lado, na cadeira de balanço que ficava ao lado do fogão, sua idosa mãe. Acabávamos tendo boas conversas. A senhora também era muito simpática e demonstrava ter bastante educação. Heitor recebia, por ser cadeirante, um miserável auxílio do governo, que mal pagava aquele quinto dos infernos no qual morávamos. Mas era isso ou viver nas ruas com a velha mãe. Tinha o hobby de, durante o dia, criar esculturas artesanais em sisal. Fazia coisas realmente bonitas e as vendia, aos sábados, numa feira que era organizada a duas quadras da pensão. Assim conseguia ainda algum dinheiro para as despesas básicas. A pensão não tinha acessibilidade e era um sacrifício para ele se locomover por ali, principalmente sair à rua. Durante à noite, dizia não sentir muito sono e, por isso, ia à cozinha preparar chá de hortelã para a mãe idosa.
— Sabe filho – ele me chamava assim – essa vida é dura com quem é bom, e premia os maus. Demorei pra perceber isso, mas é assim que funciona.
Era uma visão bastante pessimista da vida, mas eu o entendia. Metido naquela pensão, com a velha mãe, e ainda em cima de uma cadeira de rodas. Era um fim de vida muito frustrante, realmente. Eu sempre tentava animá-lo, mas nunca tive algum êxito. E assim se passaram noites e noites em que conversávamos, os três, aproveitando a paz das madrugadas.
Eu chegava da faculdade, naquela noite fria, por volta das 23:00h. Percebi uma agitação em frente à pensão, e luzes que, de longe, pensei serem o giroflex de alguma viatura da polícia. Talvez finalmente tivessem vindo buscar o traficante do quarto 05. Aproximei-me com cautela e percebi que, na verdade, era uma ambulância da Saúde Municipal. Alguém já se encontrava na maca e era, então, colocado dentro da viatura. No meio do rebuliço daquelas pessoas, tive a impressão de ser Heitor o homem na maca. Apresso o passo, mas não consigo chegar a tempo e a viatura deixa o local. Algumas testemunhas do resgate ainda comentam algo, outras se recolhem para dentro. Do outro lado da rua uma janela é fechada.
Entro na pensão preocupado. O que teria acontecido ao Heitor? Quase esbarro na asquerosa proprietária, Dona Regina, e não tenho alternativa senão perguntar-lhe:
— Era o Heitor na ambulância? O que aconteceu com ele?
— Teve um ataque, mas já tava demorando mesmo, fumava mais que uma chaminé. Acho que já era, acho até que já levaram morto.
Afastou-se arrastando as pantufas e resmungando, ruminando o mau humor que tomava conta do corpo gordo. Em nenhum momento percebi alguma empatia, alguma solidariedade, em relação a ele.
Naquela noite, levantei para preparar um macarrão instantâneo. Meu estômago roncava e dei graças de encontrar, ainda, um daqueles que basta acrescentar água fervente. Acho que estava precisando, depois daquilo, de um pouquinho daquele sódio todo que despejam naqueles copos. A cozinha estava deserta, é claro. Heitor hospitalizado, isso se ainda estava vivo, e sua mãe, com certeza, estaria ao seu lado. No dia seguinte tentaria saber alguma coisa, talvez até visitá-lo, se descobrisse em qual hospital estava.
Acordo bastante tarde, por volta das dez da manhã. Só teria trabalho da faculdade à tarde. O sol atacava com todas as suas forças e abafava o ambiente. Nem parecia que esfriara na noite anterior, noite em que Heitor tivera, pelo que diziam, um ataque cardíaco. Me arrasto preguiçosamente até a cozinha onde pensava preparar um café. Gadeia, o traficante pé-de-chinelo que morava no quarto vizinho ao meu, senta-se à janela, enrolando tranquilamente o que imagino seja um baseado.
— E aê Gadeia, tudo bem? Cara, você sabe do Heitor? Se era grave e tal? E onde ele tá internado?
— Pô maluco… cê não tá sabendo não? O véio morreu, bateu as botas, abotoou o paletó de madeira, foi pra terra dos pé junto… já era… Enfarte fulminante. Acho que já chegou morto já no pronto-Socorro. A véia foi saber dele já cedo. Tava fudida da cara, pois amanhã é dia de receber o aluguel, tá ligado? Ela não tá nem aí pro infeliz, essa nojenta. Já até ia ver no quarto dele se pegava a TV do coitado.
Então Heitor tinha morrido mesmo. A única pessoa ali com quem se podia conversar algo interessante, além da velha mãe, é claro.
— E a mãe dele? Será que tá por aí? Talvez precise de alguma coisa…
Ele olha para mim com uma expressão debochada, enquanto coça a barba rala do queixo.
— Mãe? Vai dizer que caiu no papo dele, de que a mãe morava com ele aqui? O cara era pirado, mano, falava de uma mãe que nunca apareceu por aqui. Passava noites falando sozinho na cozinha, tá ligado? até você chegar e começar a trocar uma ideia com ele. A véia Regina sempre disse que ela havia morrido muito antes dele chegar aqui nesse fim de mundo. Era doido, cara, doidim da cabeça… coitado do véio.
Levanta-se e sai, jogando a camiseta sobre o ombro esquelético.
Mas de que Gadeia falava afinal? Eu havia conversado com os dois, na cozinha, aquele tempo todo, madrugadas afora. Lembro do quão bem educada era aquela senhora, sempre me chamando a atenção de que eu deveria parar de consumir aquelas, em suas palavras, porcarias, e comer comida de verdade. Heitor sempre preparando seu chá preferido, de hortelã. Fiquei confuso e pensei que Gadeia andava fumando demais.
Passaram-se dias e o que Gadeia dizia confirmou-se: eu soube por outros inquilinos que Heitor não teve tempo de ser ressuscitado e chegou ao hospital morto. Dona Regina realmente tirou a pequena TV que ele tinha em seu quarto e uma filha, dois ou três dias depois, apareceu para buscar seus pertences, basicamente coisas sem muita utilidade.
Ele jamais me falara de filhos, apenas comentava coisas negativas sobre família. Acho que não tivemos tempo de aprofundar nossas conversas. Sobre a suposta mãe, não sabia de mais nada, pois evitava ao máximo meus vizinhos de quarto, assim como fazia com Dona Regina.
Voltei da faculdade e, depois de um banho sofrido no banheiro cheio de baratas, me dirigi à cozinha, com o copo de macarrão instantâneo repleto de sódio na mão. Tudo o que precisaria era de um pouco de água fervente.
Aproximando-me pelo corredor que dava acesso à cozinha da pensão, sinto o agradável cheiro de hortelã tomando conta do ar. Era o chá preferido da mãe de Heitor, que ele lhe preparava, todas as noites, com tanto carinho. Ouço vozes que me soam familiares. Olho para trás e a pensão está, como de costume àquelas horas, totalmente deserta. Todas as portas fechadas. Escuto apenas uma TV ligada em algum dos quartos. São dez minutos passados da meia-noite. Tornou-se hábito, agora, passar boa parte das noites na cozinha da pensão.
Os outros inquilinos me olham de lado. Sei que falam que sou estranho, que passo as noites na cozinha, falando sozinho. Se cada vez mais afastam-se de mim, é um favor que me fazem. Heitor era a única pessoa ali que talvez prestasse, apesar de sua desgraçada condição, esquecido pela filha em uma velha pensão, preso a uma cadeira de rodas. Se era louco, então eu também o sou. Estou seguindo os conselhos da doce senhora. Parei de consumir comida instantânea e agora levo uma boa marmita do restaurante da esquina, com arroz e feijão, “comida de verdade”, como ela continua dizendo, para esquentar no micro-ondas. Parei com o café e os refrigerantes, e aprendi a apreciar o chá de hortelã que Heitor, tão bem e carinhosamente, prepara para nós três.
ESCRITO POR: Sergio Kuns
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