Dentro das Trincheiras

por Mundo Sombrio
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Recobrando a consciência, ainda antes de abrir os olhos, sinto um grande peso que me impede muitos movimentos. Quase metade de meu corpo se encontra soterrado, e tenho dificuldades em me desvencilhar dos escombros, terra e madeira, em grande parte. Mas há também alguém sobre mim.

Os morteiros atingiram em cheio as trincheiras nas quais minha companhia se encontrava agrupada. Está tudo revirado. Um odor acre toma conta do ar. Cheiro de fumaça, de algo que queima. Carne queimada. Liberando, finalmente, a perna que se encontrava presa, consigo ficar de pé e olhar um pouco melhor a minha volta. A impressão que tenho é que a terra ali teria sido arada. Entre a fumaça que caprichosamente paira no ar, consigo ver muitos corpos espalhados pelo chão. Difícil reconhecer quem são essas pessoas. A grande maioria, retorcida e destroçada pelos morteiros, irreconhecíveis. Há silêncio no ar. As baterias já terminaram o ataque e uma tropa de reconhecimento, pelo visto, já teria passado para confirmar que a investida fora bem sucedida, quem sabe cravando baionetas nos poucos moribundos que gemiam pelo chão.

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Estou coberto de lama e sangue. Minha farda tem a cor da mistura desses dois elementos. Tento verificar se estaria ferido, e penso que não. Lembro que havia um corpo sobre mim, um corpo pela metade, o que explicaria estar ensanguentado tanto assim. Até onde minha visão permite alcançar, o cenário aterrador é o mesmo. Terra revirada, arame farpado, madeira  e corpos retorcidos e dilacerados.  Penso que não tenha sobrado ninguém, além de mim. Como, milagrosamente, estou vivo, naquilo que há pouco ainda era uma trincheira, eu não faço ideia… talvez o soldado cortado ao meio tenha salvado a minha vida quando fora arremessado sobre mim, juntamente com toda aquela terra toda da qual precisei emergir.

— Complicado, hein amigo?

Ainda desorientado, procuro descobrir de onde viera tal voz. Há fumaça que, com o vento, encobre a visão em algumas direções. Cambaleando, caminho dois ou três metros e, finalmente, consigo ver alguém que reconheço ser da minha Companhia, pelo que resta da farda que usa. Está sentado no fundo de uma trincheira, com as costas apoiadas contra os troncos que lhe serviam de escoras. Posso ver que, assim como a minha, sua farda também está enlameada, em frangalhos, e falta a bota no pé esquerdo. Ele tenta acender um cigarro, mas o isqueiro a querosene insiste em falhar. Quando, finalmente, o consegue, traga profundamente, e alguma fumaça parece sair do lado direito, perto da orelha. Aquilo me deixa perturbado. Então percebo o ferimento maior no topo de sua cabeça.  Eu poderia dizer que lhe faltava a “tampa” do crânio, e era possível enxergar parte do cérebro exposto. O rosto estava bastante escurecido. Como poderia estar ali, sentado tranquilamente, a fumar um cigarro, naquelas condições?

— Fique quieto aí, vou procurar ajuda.

— Ajuda? Olhe a sua volta, parceiro… não restou ninguém. Os malditos morteiros acertaram as trincheiras em cheio. Ah maldito cigarro molhado do caralho…

— Deve ter um médico por aqui, você precisa ser atendido logo.

— Acabou pra mim jovem – Diz o soldado, liberando uma baforada de fumaça para o alto. – Não percebe?

Ele apresentava um ferimento gravíssimo na cabeça. Imaginei que deveria ter outros pelo corpo e, no entanto, conversava comigo com muita tranquilidade. Saboreava aquele cigarro, sentado no fundo da trincheira, tendo aos pés alguns corpos igualmente destroçados. O que mais me perturbava era o fato de que saía fumaça de algum buraco do lado direito da cabeça. O céu estava escuro.

— Sabe… nós somos engraçados… matamo-nos uns aos outros, e nem sabemos por quê… você já enfiou a baioneta em um homem? Já olhou em seus olhos enquanto grita e empurra a lâmina?  Enquanto torce a lâmina? você não faz isso porque quer, você faz porque, se não o fizer, será ele a atravessá-lo com o punhal. Ele é seu inimigo? Você sequer o conhece… ele, assim como você, tem um lar…mãe, pai, talvez até filhos. E você o trespassa com uma fudida baioneta. Que sentido há nisso? Nós não somos inimigos. Enquanto isso, velhos broxas observam, em grandes mesas, mapas nos quais nós somos apenas peças de um jogo de tabuleiro.

Continuo a olhar em minha volta, na esperança de encontrar outros sobreviventes àquela carnificina, de preferência um médico, mas não vejo nenhum movimento além da fumaça que insiste em bailar com o vento por entre os corpos empilhados. Ao longe, ainda consigo visualizar um cavalo que se contorce até ficar imobilizado por completo.

A conversa daquele homem era estranha. Fazia reflexões sobre a guerra, enquanto tinha o crânio aberto e o cérebro exposto. Eu sentia engulhos cada vez que para ele olhava. Cheiro de sangue.  Mesmo assim, me aproximei mais, na tentativa de ajudá-lo. Não fazia a mínima ideia de como poderia fazer algo por alguém naquelas condições. Uma bandagem, um curativo?  mas sequer um tecido limpo havia ali. Somente lama, sangue e cheiro de carne queimada.

Tento descer ao fundo da trincheira onde ele se encontra. Desajeitadamente, escorrego e caio, batendo a região das costelas em uma viga de madeira, o que me tira o ar por alguns instantes. Cerrando os dentes, olho para as nuvens que não deixam o sol se mostrar. O céu está escuro. Penso nas perguntas feitas pelo soldado. Quem são nossos inimigos, afinal de contas? Tento colocar-me em pé, assim que consigo respirar novamente. A fumaça que o vento traz queima minhas narinas, e vomitar é inevitável. Depois de esvaziar o estômago, volto novamente a atenção ao soldado que tentava, mesmo sem saber como, ajudar. Aproximo-me. Ele está imóvel, com o rosto voltado para o céu cor de chumbo.

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— Ei, tudo bem com você?

Tudo bem? Que pergunta foi aquela? Ele tinha a cabeça aberta, e o cérebro exposto… enquanto tragava um cigarro parcialmente molhado, a fumaça saía de algum buraco que não as narinas nem a boca. Que maldita pergunta foi aquela?

Ele não se move, e não responde. Na sua mão direita, entre dedos ensanguentados, um cigarro enlameado que ele sequer conseguira acender. Os olhos abertos, assim como a boca. Parte da cabeça havia sido dilacerada, não somente os ossos do crânio, como o próprio cérebro. Coloco dois dedos sobre a artéria carótida e vejo que não há pulsação. O corpo está bastante frio, indicando que morrera já havia algum tempo. Me sinto confuso, afinal acabara de com ele conversar.

Fui resgatado com vida, um ou dois dias depois, perambulando em meio à lama, aspirando o odor da carne dilacerada que começava a se decompor. Realmente, eu teria sido o único sobrevivente do brutal ataque dos morteiros inimigos. Eu não apresentava danos físicos, somente psicológicos, que penso serão irreversíveis. Alguns diziam ser um milagre. Outros, que eu teria me acovardado e me escondido. Para mim nada daquilo mais importava… eu havia conversado com um morto. Eu o vi tragar aquele cigarro todo que, no entanto, sequer fora aceso por estar molhado. Tenho certeza de ter visto fumaça saindo de ferimentos, de buracos, abertos na cabeça… o estado em que se encontrava deve ter lhe permitido apenas alguns minutos de sobrevida, quando muito, nos momentos em que eu me encontrava, ainda inconsciente, sob os escombros daquele grande jogo de tabuleiro. E, ao contrário do que você esteja esperando, leitor, nunca procurei saber quem era, onde morava. Nunca procurei sua família, embora ele ainda me peça isso, todo maldito dia, com aquele igualmente maldito cigarro enlameado entre os dedos.


ESCRITO POR: Sérgio Kuns

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